PUBLICIDADE

Publicidade

Serviço de delivery de monges cria o 'uber do budismo' no Japão

Ferramenta permite que pessoas realizem cerimônias religiosas em casa; líderes da religião condenam a prática

Por Jonathan Soble
Atualização:
Sacerdotes vão até as casas dos 'clientes' Foto: Ko Sasaki/NYT

SAKAI, JAPÃO - O sacerdote budista acendeu o incenso em um pequeno altar, como os membros de sua ordem têm feito há séculos. Enquanto entoava sutras, Yutaka Kai fechou os olhos e orou por sua esposa, que morreu de complicações decorrentes de uma cirurgia no joelho, no ano passado.

PUBLICIDADE

Kai, 68 anos, deixou de lado o budismo de sua família quando saiu de sua cidade natal, no interior, há décadas, para trabalhar em uma fábrica de pneus. Isso significava que ele não teria um templo local para visitar no primeiro aniversário da morte de sua mulher, data importante para os budistas japoneses.

É aí que entra a internet: no Japão moderno, um sacerdote budista agora pode ser encontrado a poucos cliques de um mouse, na Amazon.com.

"É acessível e o preço é preestabelecido. Você não precisa se preocupar com a quantia que supostamente precisaria dar" disse o filho mais velho de Kai, Shuichi, de 40 anos.

O sacerdote no memorial de Kai, Junku Soko, é parte de um negócio polêmico que está invadindo o enterro tradicional no Japão. Em um país onde regulamentos e interesses poderosos impedem grande parte da economia sob demanda - o Uber, por exemplo, tem uma presença extremamente pequena aqui - uma rede de sacerdotes freelancers obtém bons ganhos em uma esfera pouco provável, a da religião.

Essa empreitada é vista por alguns como inconveniente e enfrenta a condenação de líderes budistas. Um grupo representando as muitas seitas budistas do Japão se queixou publicamente depois que a Amazon começou a oferecer o obosan-bin - entrega de sacerdote - no seu site japonês, no ano passado, em parceria com uma startup local.

Mas os sacerdotes e seus apoiadores dizem estar lidando com necessidades reais. Eles afirmam que o obosan-bin está ajudando a preservar tradições budistas, tornando-as acessíveis aos milhões de pessoas no Japão que se distanciaram da religião.

Publicidade

"Os templos vendem velas de 10 ienes por 100 ienes. Eles estão protegendo seus próprios interesses", disse Soko, 39 anos.

Tais argumentos são conhecidos daqueles que já viram empresas de comércio eletrônico suplantarem outras partes da economia, desde o livro impresso até companhias aéreas, táxis e hotéis.

No Japão, mesmo em áreas muito menos sensíveis que a religião, os recém-chegados frequentemente têm uma recepção fria e as startups são mais raras que em outros países ricos. Entre as explicações estão a escassez do capital de risco, o peso político exercido por empresas estabelecidas e uma cultura que valoriza a estabilidade sobre a destruição criativa que impulsiona o crescimento em países como os Estados Unidos.

No entanto, a religião pode se mostrar uma exceção. Ela é tão opaca - e tão distante do quotidiano de muitos japoneses modernos - que uma pequena perturbação tecnológica pode ser bem-vinda.

PUBLICIDADE

As apostas são materiais, além de espirituais: tal como acontece com instituições religiosas em muitos outros países, os templos no Japão recebem incentivos fiscais generosos.

"Se virar uma taxa de serviços em vez de uma doação e o governo disser que vai cobrar impostos, como com um negócio comum, como iremos protestar?", disse Hanyu Kakubo, sacerdote da Federação Budista do Japão, que se opõe ao obosan-bin.

Assim como acontece com adeptos de muitas religiões, os budistas normalmente fazem doações aos sacerdotes por seus serviços. Os defensores do obosan-bin argumentam que os templos convencionais já operam como empresas - do tipo que coloca o cliente em desvantagem por causa dos preços não estabelecidos. O valor fica a cargo do doador, um costume que leva muitos a pagar a mais, disse Soko.

Publicidade

"Eles não querem deixar as coisas claras", disse ele.

A reação em relação ao obosan-bin, no geral, foi positiva, por razões igualmente familiares: ele oferece conveniência e preços baixos e previsíveis.

"Há críticas ferozes do mundo budista, mas hoje em dia muitas pessoas estão abandonando funerais religiosos. Pelo menos as pessoas que usam o obosan-bin consideram o sacerdote uma necessidade", disse Noriyuki Ueda, antropólogo que estuda o budismo no Instituto de Tecnologia de Tóquio.

Kakubo, da Federação Budista, admitiu que muitos templos haviam feito um péssimo trabalho para se adaptar.

"Precisamos pensar sobre o fato de que criamos essa situação na qual as pessoas sentem que precisam recorrer à internet", disse ele, acrescentando: "Estamos protegendo nossos interesses? Sim, obviamente".

No budismo, pessoas fazem rituais nos aniversários de morte dos parentes Foto: Ko Sasaki/NYT

O processo de encomendar um sacerdote na Amazon pode parecer desconcertantemente secular. O usuário clica em uma das várias opções e a adiciona ao carrinho de compras virtual, da mesma forma que fariam com um espremedor de frutas ou um par de sapatos. Os preços são fixos. Uma cerimônia memorial básica na casa do falecido custa 35 mil ienes (US$ 344).

O pacote mais caro, com o serviço cerimonial no cemitério e a concessão de um nome póstumo budista especial, custa 65 mil ienes.

Publicidade

O obosan-bin foi originalmente uma invenção da Minrevi, uma startup de internet com fins lucrativos. Antes de assinar com a Amazon no ano passado, ela construiu uma rede de 400 sacerdotes e fazia reservas no seu próprio site, que ainda mantém, e por telefone. Afirma que mantém cerca de 30 por cento das taxas cobradas e o resto vai para o sacerdote.

A empresa adicionou outros 100 sacerdotes para atender à demanda gerada por sua nova parceria com a Amazon, disse o porta-voz Jumpei Masano. Ele espera que as reservas se aproximem dos 12 mil este ano, o que representa um aumento de 20 por cento.

"Muitas pessoas não tem qualquer conexão com o templo, por isso não sabem aonde ir ou o que fazer quando precisam organizar um funeral. Vimos que havia uma demanda", disse Masano.

A Amazon não quis comentar. Em resposta por escrito à associação budista em abril, relatada pelos noticiários japoneses, ela disse que seu objetivo era "fornecer o máximo de informação possível a seus usuários para que eles possam tomar suas próprias decisões".

Hoje, 70% dos japoneses se identificam em pesquisas como não religiosos ou ateus, embora muitos tenham dito que ainda seguem costumes religiosos tradicionais como ir a um santuário xintoísta no ano novo ou periodicamente visitar o túmulo de seus antepassados.

A nora de Kai encontrou o site da Minrevi. Sua única exigência era que o sacerdote deveria ser da ordem à qual a família de Kai pertencera em sua cidade natal, na província de Ehime, na ilha de Shikoku.

Soko encaixava-se no perfil. Na cerimônia, que aconteceu no apartamento de Kai, fez uma breve homilia sobre a fé e a lembrança dos mortos.

Publicidade

Os Kais pareciam satisfeitos; disseram que iriam chamar Soko no próximo aniversário de morte importante, daqui a dois anos.

Soko disse que inovações como o obosan-bin são vitais para a sobrevivência do budismo, já que as congregações pagantes dos templos estão encolhendo como resultado de mudanças sociais e do despovoamento das regiões rurais.

Os rendimentos estão encolhendo, também. A receita de templos e outras instituições religiosas caiu um terço nos últimos 20 anos, principalmente por causa de uma diminuição das doações regulares, de acordo com a Agência para Assuntos Culturais.

"No seminário, nos ensinam a entoar sutras, mas não dizem nada sobre como gerenciar um templo. Temos de tentar coisas novas", completou.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.