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Mulheres usam frutos da caatinga para empreender no sertão baiano

Por meio de cooperativas, catadeiras e cozinheiras de ingredientes como licuri e tamarindo se unem em negócios que mantêm a comunidade; produção sustentável e senso coletivo são características

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Foto do author Jayanne Rodrigues
Por Jayanne Rodrigues
Atualização:

Há um ditado baiano que diz: “Eu sou eu, e licuri é coco”, e no sertão da Bahia isso é evidente. Os frutos da caatinga não servem apenas para consumo próprio, mas também para o sustento de muitas famílias, com mulheres à frente dos negócios. São produtos que estão ao alcance da mão, às vezes no próprio quintal, como o licuri e o tamarindo. Hoje, ambos alcançam lares de diversos Estados, distribuídos em e-commerce por pequenas empresas criadas por mulheres sertanejas.

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O licuri, uma espécie de coco em miniatura, de gosto concentrado e doce, virou renda para moradores da zona rural de Capim Grosso (BA), a cerca de 280 km de Salvador. O trabalho é feito, em sua maioria, por mulheres, que somam 80% da equipe da Cooperativa da Produção de Piemonte da Diamantina (Coopes). 

A luta por reconhecimento dos ingredientes e dos produtos feitos com eles por meio da cooperativa começou em 2005 por Josenaide Alves, de 60 anos, que há mais de duas décadas trabalha com o licuri. “No início ninguém acreditava”, conta ela, que hoje entrega para todo o País por meio do site Central da Caatinga.

A história começa sob duas rodas de uma bicicleta. Josenaide saía do povoado Jabuticaba - onde morava - rumo à zona urbana de Capim Grosso para vender licuri. Naquela época, percebeu que as quebradeiras vendiam o coquinho por um preço muito baixo. 

Mulheres empreendedoras da marca Sabor do Salitre, no sertão baiano, que vende produtos feitos com o fruto tamarindo por meio de e-commerce; no canto esquerdo, Sônia Ribeiro, que ajudou na expansão do negócio. Foto: Marcos Santos

“Todo dia às 5h da manhã eu escutava minhas vizinhas batendo o licuri na pedra, e depois via um caminhão chegando. Elas vendiam por R$ 0,40.” Foi então que decidiu procurar instituições e chefs de cozinha para oferecer o produto.

O coquinho saiu das comunidades quilombolas para restaurantes renomados e até mesmo para a Europa. O fruto estreou na Itália, na Organização Slow Food, que tem o objetivo de lutar contra o desaparecimento das culturas e tradições alimentares locais. A bicicleta de Josenaide não deu conta das fronteiras. Assim, o meio de transporte mudou. Ela viajou quatro vezes para a Itália. “Eu quis valorizar o licuri como eles valorizam a oliva lá.”

Desde então, o projeto só cresceu. Hoje, mais de 300 famílias são beneficiadas. A colheita é realizada na mata e acontece de forma manual. Primeiro, o licuri é tirado do cacho, depois é secado em cima de um plástico, quebrado com uma pedra pelas agricultoras, congelado e enviado para a sede da cooperativa para ser armazenado. O coquinho dá produtos como óleo, cosméticos, brincos, colares, além de ser vendido caramelizado com rapadura. 

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A partir da labuta de Josenaide e outras centenas de quebradeiras, a Bahia se tornou o maior produtor de licuri no Brasil, segundo dados do IBGE. Outra conquista foi a Lei de Patrimônio Biocultural do Estado, que garante a preservação e evita a exploração do fruto. Mas com a chegada da pandemia as vendas caíram 90%. Só por meio do apoio de universidades, instituições e suporte estatal - como UFPE, Embrapa, IFBA e UFBA -, as produtoras conseguiram retomar o trabalho gradualmente. 

Renata Silva, gestora da cooperativa, afirma que agora a principal meta é inovar em tecnologias sustentáveis, para transformar a quebra manual do fruto em mecanizada. “A gente está buscando abertura de mercado e essas mulheres não dariam conta pra quebrar tanto licuri.” Não só por agregar valor cultural e histórico, o licurizeiro garante às quebradeiras qualidade de vida no Semiárido. “A gente tem mulheres que na alta safra conseguiram dinheiro até para comprar um terreninho”, comemora a gestora.

Do pé do tamarindo

A 270 quilômetros dali, no Baraúna do Salitre, comunidade rural de Juazeiro, à beira do rio São Francisco, dez mulheres tiveram uma ideia audaciosa: utilizar os tamarindos cultivados no quintal para ter uma renda extra. 

A marca Sabor do Salitre surgiu há quatro anos, em um período de escassez de chuvas que afetou a agricultura familiar. Sem políticas públicas de convivência com o Semiárido na comunidade, a alternativa foi improvisar com os alimentos cultivados em casa.

Cozinheiras mexem panela com doce de tamarindo, para a marca Sabor do Salitre. Foto: Willian Frana

Mesmo tendo facilidade em se adaptar ao clima, o fruto do tamarindo ainda não tinha representação significativa na culinária local. Com esse pioneirismo, a planta nativa da caatinga, de cor amarronzada e gosto azedo, se tornou doce, bala, geléia e licor na mão dessas mulheres. 

Sônia Ribeiro, de 54 anos, é uma delas. “A gente começou na cozinha de casa mesmo, colocando o doce em potinhos de plásticos”, conta. No começo, a venda era concentrada entre vizinhos. Após contatos com instituições, o negócio furou a bolha da comunidade Salitre. “O primeiro lugar que saímos com o doce foi a Embrapa, em Petrolina”, relata Sônia.

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Uma singularidade desse empreendimento é que todas as mulheres têm mais de 45 anos, um perfil que geralmente enfrenta dificuldades para encontrar oportunidades no mercado de trabalho. Antes de criar o Sabor do Salitre, a maioria delas viviam somente da agricultura familiar e do Bolsa Família. Hoje, vendem seus produtos também pelo site Central da Caatinga, que reúne outros produtos regionais e entrega em todo o País.

“O que eu não tive eu pude dar pra minha filha”, conta Sônia, emocionada. Com a renda do negócio, ela conseguiu ajudar a filha a ingressar no curso de Pedagogia.

Licuri, típico fruto da caatinga que lembra um pequeno coco, de sabor adocicado. Foto: André Fofano

Por meio de um projeto do grupo de mulheres do Território rural Arco-Íris, do Instituto Regional da Pequena Agropecuária (IRPAA), as doceiras receberam lavadeira, mesa industrial, fogão e freezer. Assim, o empreendimento foi ampliado. 

Há dois meses, elas também passaram a produzir doce de maracujá e de uva. Mensalmente, são produzidas cerca de 400 unidades de doce. Hoje, a fabricação é realizada na associação da comunidade. O próximo passo do grupo é se tornar cooperativa. 

Ponto de ruptura nos empreendimentos

O denominador em comum entre as duas iniciativas, além do protagonismo feminino, é a vertente na economia solidária, que tem a ideia de circular os negócios locais de uma maneira sustentável. Sabor do Salitre é um dos 128 empreendimentos acompanhados pelo Centro Público de Economia Solidária do Sertão do São Francisco (Cesol), no interior baiano. 

O Cesol foi responsável por parte de comercialização da empresa salitreira, desde a análise das embalagens, rotulagens, marketing até a comercialização. Atualmente, o País conta com 5.314 cooperativas, segundo dados da Organização das Cooperativas do Brasil. 

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De acordo com Josiana Ferreira, gerente do Sebrae do Sertão do São Francisco, trabalhar de forma colaborativa é crucial. “A organização das mulheres que fazem parte dessas iniciativas, do zelo pela qualidade de produto e o senso coletivo, é muito característico daqui”, explica.

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