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Consumidor com deficiência é foco de negócios com produtos especializados

Indicação entre os próprios clientes tem sido principal ferramenta de divulgação de lojas; mercado ainda ignora poder de compra de PCDs, diz especialista

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Por Shagaly Ferreira
Atualização:

Quando a empresária pernambucana Maria Eduarda Tassi conheceu a nutricionista paulista Fernanda Melaré há oito anos, não imaginava que aquele era o início de uma amizade com sua futura parceira de negócios. Mães de crianças neuroatípicas, as duas faziam parte de uma rede de apoio em um aplicativo de mensagens, no qual compartilhavam alegrias e desafios da maternidade com outras mulheres em condição semelhante.

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Foi entre uma conversa e outra que uma necessidade específica apontada pelas integrantes do grupo lhes chamou a atenção: a dificuldade em encontrar nas lojas varejistas opções de vestuário adequadas para crianças atípicas a partir dos quatro anos. A rotina de customização de roupas convencionais adotada pelas mães acendeu um alerta de oportunidade. 

“A gente sempre adaptava o body de bebê para as necessidades dos nossos filhos. O meu filho e a filha da Fernanda usam gastrostomia (sonda alimentar) e, por isso, a gente sempre cortava na roupa um buraquinho na lateral. Com o tempo, não conseguimos mais achar a peça com tamanhos maiores do que para dois anos de idade. E aí, a gente pensou: ‘já que é uma necessidade dos nossos filhos e a gente conhece bem isso, vamos lançar uma marca de roupa inclusiva para crianças e adolescentes’, pois a gente até tinha tido contato com algumas marcas, mas todas fabricavam roupas para adulto”, recorda Maria Eduarda.

Ao observar essa lacuna no mercado, elas fundaram, em 2018, a Iguall Moda Inclusiva com foco em crianças com deficiência na faixa etária entre os quatro e os 16 anos. As peças são produzidas por encomenda em São Paulo e vendidas apenas via e-commerce para todo o Brasil, sendo desenvolvidas de forma personalizada, em atendimento às necessidades de cada cliente. A loja virtual recebeu um investimento inicial de R$30 mil e, em média, vende de 60 a 70 peças por mês. Informação de moda, conforto e funcionalidade são o diferencial da marca, explica a empresária. 

Maria Eduarda Tassi com o filho Vincenzo, que usa uma das peças adaptadas da Iguall Moda Inclusiva para facilitar a alimentação por sonda. Foto: Carlos Ezequiel Vannoni/Estadão

“Temos a preocupação de que o tecido seja sempre muito respirável, a gente não coloca absolutamente nada na parte de trás da peça, como zíper ou botão, que é para não haver um desconforto para quem vai ficar sentado por muito tempo. Só usamos etiquetas termocolantes. É uma questão mesmo de praticidade no manuseio, para ser uma troca de roupa menos incômoda. Além disso, a gente se importa muito que a roupa seja voltada pra esse lado da moda também”, conta Maria Eduarda. Cada roupa leva em torno de dez dias para ficar pronta e todo o retorno obtido com as vendas tem sido reinvestido na empresa.

Marketplace e inclusão

Assim como na Iguall, o público-alvo do portal de vendas UinHub, de São Paulo, são pessoas com deficiência e mobilidade reduzida. O marketplace está em funcionamento desde 2021 com a proposta de ser um ecossistema de inclusão, reunindo em um só lugar produtos, serviços e conteúdos de proposta inclusiva. Ao oferecer ferramentas de acessibilidade e opção de busca por tipo de deficiência, o site recebe, em média, dez mil visitas por mês, dando acesso a 800 itens, desde acessórios a artigos para casa, vendidos por 40 lojas.

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Marcos Zoni, CEO da plataforma, explica que havia a necessidade de reunir uma cadeia de fornecedores para oferecer produtos para esse público, commelhores preços, mais modernos e mais úteis para cada perfil, evitando reproduzir o “aspecto hospitalar” que tradicionalmente é encontrado nas lojas específicas para PCDs.

“O nosso trabalho não é só encontrar produto, é encontrar produto que tenha preço e solução para essas pessoas. A gente tem um trabalho de curadoria, que é um cuidado que a gente precisa ter de achar coisas que sejam úteis e compatíveis com cada deficiência.”

Marcos Zoni, CEO da UinHub, prevê mais dois anos de investimento para que o fluxo de vendas no UinHub se torne mais rentável. Foto: Iza Guedes

No momento, uma plataforma nova do UinHub está em fase de produção, com o desenvolvimento mais profissional e acessível, de modo a facilitar a interação com os clientes, cujo ticket médio é R$240. Zoni prevê mais dois anos de investimento para que o fluxo de vendas se torne mais rentável.

“É um mercado em desenvolvimento, então o lucro é uma coisa mais para a frente. A gente acredita, sim, que é rentável e não consegue manter uma plataforma sem ser assim. O que a gente quer fazer é conseguir custos e preços melhores, não por caridade, mas como um negócio. A gente tem toda uma motivação que vai além de lucro, mas a gente sabe que tem de lucrar com isso”, diz.

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Desafios nas vendas

O público atendido pela Iguall e pela UinHub faz parte de uma rede de consumidores que integra um segmento numeroso no Brasil. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2019, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano passado, as pessoas com deficiência no Brasil somam 17,3 milhões, correspondendo a 8,4% da população do País com mais de dois anos de idade. A região Nordeste concentra o maior número percentual desse público (9,9%), seguida de Sudeste (8,1%), Sul (8%), Norte (7,7%) e Centro-Oeste (7,1%).

Apesar das vendas serem ampliadas para todo o Brasil, ambas as lojas concentram vendas nas regiões Sul e Sudeste. O valor alto do frete das transportadoras impacta no preço para o consumidor final, diminuindo a aquisição de produtos por clientes do Norte e do Nordeste, onde está localizada a maior parte do público-alvo.

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Para conquistar novos clientes e manter o fluxo de vendas, as empresas contam com a indicação dos próprios usuários como ferramenta principal de divulgação, além da fidelidade de quem já consome os itens. Somente na UinHub, produtos e serviços para pessoas com deficiência física representam 60% do que é comercializado.

Outro ponto que diminui o alcance das vendas é a dificuldade de parcerias com grandes lojas do varejo. Para Maria Eduarda Tassi, o comércio inclusivo ainda não é visto como potencial lucrativo. “A gente, enquanto Iguall, até tentou contato com algumas marcas para fazer parceria, mas ninguém abre as portas. Não é por falta de ir atrás. Eu já mandei dezenas de e-mails, tentei marcar várias reuniões, mas não é do interesse porque não é lucrativo para eles, que não sabem o quanto de público isso vai atingir, e a gente vai ficando para trás”, lamenta.

Potencial de consumo

Para Carolina Ignarra, CEO do Grupo Talento Incluir, um ecossistema de soluções focadas em diversidade e inclusão, o mercado precisa considerar o potencial consumidor das pessoas com deficiência. Dados da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, do Ministério da Economia, divulgados no ano passado, registram que o número de PCDs no mercado de trabalho é de cerca de 372 mil, um aumento de 14,11% em relação às vagas ofertadas para esse público e preenchidas em 2015, que somavam pouco mais de 326 mil.

A visão da pessoa com deficiência como alguém que trabalha e detém poder de compra passa despercebida pelas empresas, além de ser ignorada também a própria condição de existência, como explica a especialista.

“Eu entendo que a pessoa com deficiência existe e, se ela existe, de uma forma ou de outra ela consome, ela gera consumo. A gente vai fortalecendo a empregabilidade para que a gente com deficiência seja o consumidor direto em uma quantidade maior, mas quando a pessoa com deficiência existe ela já está em uma sociedade que é capitalista e que o consumo faz parte, então é só considerar a existência. Então, é olhar para uma realidade, é olhar para um público que tem potencial por qualquer um dos lados que o consumo trouxer”, pontua Carolina.

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“A gente não vai se sentir em igualdade enquanto estiver sendo visto como público sem potencial. Então, eu acredito que esse olhar para a gente como consumidor nos valoriza de verdade”, ela pontua.

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